terça-feira, 18 de abril de 2017

O DESPERTAR (excerto do livro 'SIDARTA', de HERMANN HESSE)

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O DESPERTAR

Enquanto Sidarta saía do bosque, onde permanecia o Buda, o Perfeito, onde também permanecia Govinda, sentia que deixara atrás, nesse aprazível lugar, toda a sua vida anterior, a qual daí por diante se separaria dele. Essa sensação que tomava conta de seu espírito preocupou-o durante a vagarosa caminhada. Sidarta refletia profundamente. Mergulhava até o fundo dessa emoção, assim como se mergulha na água, para alcançar o ponto onde repousam as causas. Pois lhe parecia que o verdadeiro pensar consistia no reconhecimento das causas e que, desse modo, o sentir se convertia em saber, o qual, em vez de dissipar-se, criaria forma concreta e irradiaria o seu teor.

Enquanto lentamente avançava pelo caminho, Sidarta refletia. Verificou que já não era adolescente, senão homem maduro. Constatou que uma coisa se distanciara dele, assim como a pele gasta se despega da serpente, e que ele cessara de sentir aquele desejo que o acompanhara através de toda a sua juventude, fazendo parte de sua personalidade: desejo de ter mestres e de receber ensinamentos. Sidarta acabava de abandonar o último mestre que surgira no curso de sua jornada; abandonara também a ele, o mestre supremo, o mais sábio de todos, o Santíssimo, o Buda. Fizera-se necessário distanciar-se dele. Já não fora possível aceitar os preceitos de Gotama.

Caminhando cada vez mais devagar, absorvido pelos pensamentos, Sidarta perguntou-se: "Mas que desejaste aprender de teus mestres e extrair de seus preceitos? Que será aquilo que eles, que tanto te ensinaram, não conseguiram propiciar-te?" E ele encontrou a resposta: "Era meu desejo conhecer o sentido e a essência do eu, para desprender-me dele e para superá-lo. Apenas logrei aludi-lo. Consegui sim, fugir dele e furtar-me às suas vistas. Realmente,nada neste mundo preocupou-me tanto quanto esse eu, esse mistério de estar vivo, de ser um indivíduo, de achar-me separado e isolado de todos os demais, de ser Sidarta! E de coisa alguma sei menos de que sei quanto a mim, Sidarta!"

Como que agarrado a esse raciocínio, o jovem interrompeu a lenta caminhada e de um pensamento nasceu outro, diferente: "O fato de eu não saber nada a meu próprio respeito, o fato de Sidarta ter permanecido para mim um ser estranho, desconhecido, tem sua explicação numa única causa: tive medo de mim; fugi de mim mesmo! Procurei o Átman, procurei o Brama, sempre disposto a fraturar e a pelar meu eu, a fim de encontrar em meu âmago ignoto o núcleo de todas as cascas, o Átman, a vida, o elemento divino, o Último. Mas enquanto fazia isso, perdi-me a mim mesmo."

Abrindo os olhos, Sidarta olhou ao seu redor, com o rosto iluminado por um sorriso. Perpassava-lhe o corpo, até os dedos dos pés, a profunda sensação de ter acordado de um sonho prolongado. Em seguida, reiniciando sua marcha, estugou o passo como quem sabe o que lhe convém realizar.

"Ah, não!" - pensou, aliviado, respirando a plenos pulmões - "daqui em diante não admitirei nunca mais que Sidarta me escape! Nunca mais meu pensar e minha vida terão por ponto de partida o Átman e o sofrimento do mundo! Cessarei de matar-me e de fraturar-me, com o intuito de achar um mistério atrás dos destroços. Não me deixarei orientar nem pelo Yoga-Veda, nem por ascetas, nem por doutrina alguma. Aprenderei por mim mesmo; serei meu próprio aluno; procurarei conhecer-me a mim e desvendar aquele segredo que é Sidarta!"

Olhou o mundo ao seu redor como se o enxergasse pela primeira vez. Belo era o mundo! Era variado, era surpreendente e enigmático! Lá, o azul; acolá, o amarelo! O céu a flutuar e o rio a correr, o mato a eriçar-se e a serra também! Tudo lindo, tudo misterioso e mágico! E no centro de tudo isso achava-se ele, Sidarta,a caminho de si próprio. Todas essas coisas, esse azuis, amarelos, rios, matos, penetravam nele pela primeira vez, através de seus olhos. Já não eram feitiço de Mara. Deixavam de ser o véu de Maia. Não havia mais aquela multiplicidade absurda, casual, do mundo dos fenômenos, desprezada pelos profundos pensadores brâmanes, que rejeitam a multiplicidade e esforçam-se por achar a unidade. O azul era azul, o rio era rio e, posto que nesse azul e nesse rio abrangidos por Sidarta, existisse, escondida, a ideia da unidade, o Divino, era, contudo, peculiar do Divino ser amarelo aí e azul lá, céu ali e mato acolá, e também ser Sidarta aqui, neste lugar. O sentido e a essência não se encontravam em algum lugar atrás das coisas, senão em seu interior, no íntimo de todas elas.

"Andei deveras surdo e insensível!" - disse de si para si, enquanto avançava rapidamente pela estrada. - "Quem se puser a decifrar um manuscrito, cujo significado lhe interessar, tampouco menosprezará os sinais e as letras, qualificando-os de ilusão, de causalidade, de invólucro vil, senão os lerá, estuda-los-á, ama-los-á, letra por letra. Eu, porém, que almejava ler o livro do mundo e o livro de minha própria essência, desprezei os sinais e as letras, em prol de um significado que lhes atribuía de antemão. Chamei de ilusão o mundo dos fenômenos. Considerei meus olhos e minha língua apenas aparentes, casuais, desprovidos de valor. Ora, isso passou. Despertei. Despertei de fato. Nasci somente hoje".

No curso desses pensamentos, Sidarta estacou mais uma vez, de repente, como se uma cobra lhe cruzasse o caminho. 

Pois, subitamente, outra coisa ainda se decantava em em seu espírito: ele, que realmente se parecia com uma pessoa que acabava de acordar ou de renascer, deveria iniciar nesse instante uma vida totalmente nova. Ao abandonar, na manhã desse mesmo dia, o bosque de Jetavana, o jardim daquele ser sublime, já estivera a ponto de despertar, de encontrar o caminho que o levasse ao próprio eu. Fora então sua intenção e se lhe afigurara perfeitamente natural regressar ao torrão natal, para junto do pai, depois de tantos anos de ascetismo. A essa altura, porém, nesse momento em que se detinha, como se se deparasse com uma serpente, impôs-se-lhe a percepção: "Já não sou aquele que tenho sido. Cessei de ser sacerdote, de ser brâmane. Que farei então lá em casa, ao lado de meu pai? Estudar? Sacrificar? Entregar-me à meditação? Tudo isso pertence ao passado, deixou de ladear meu caminho."

Sidarta parou. Quedou-se imóvel. Notando a que ponto iria sua solidão, sentiu, por um instante, pela duração de um respiro, que o coração se lhe gelava no peito, estremecendo de frio, como um bichinho, um pássaro, uma lebre. Durante muitos anos andara sem lar e, no entanto, não o percebera. Nesse momento, porém, dava-se conta da falta. Sempre, ainda, que se distanciasse de tudo, nas mais longínquas meditações, prosseguira sendo o filho de seu pai, fora brâmane, aristocrata, intelectual. Daí por diante, seria apenas Sidarta, o homem que acabava de acordar e nada mais. Com toda a sua força, aspirou o ar. Por um momento, tremeu de frio e de horror. Ninguém estaria tão solitário quanto ele. Não havia nenhum nobre que não fizesse parte dos nobres; nenhum artesão que não pertencesse à classe dos artesãos, encontrando agasalho entre seus semelhantes, vivendo a vida deles e falando a mesma língua; nenhum brâmane que não se incluísse no grupo de seus pares e convivesse com eles; nenhum asceta que não pudesse buscar abrigo entre os samanas. Nem sequer o mais isolado de todos os ermitões da selva era um homem só, não levava uma existência solitária, portanto, também ele pertencia a uma classe que lhe propiciava um lar. Govinda tornara-se monge, e milhares de monges eram seus irmãos, vestiam os mesmos trajes, tinham a mesma fé, falavam a mesma língua. E ele, Sidarta? Qual seria seu lugar? Participaria ele da existência de outrem? Haveria pessoas que falassem a mesma língua que ele?

Desse minuto, durante o qual o mundo que o cercava dissolvia-se em nada, durante o qual Sidarta estava só como um astro no firmamento, desse minuto transido de frio e de temores, emergiu Sidarta, mais eu do que nunca, mais firme, mais concentrado. Sentiu nitidamente: aquilo fora o derradeiro tremor do despartar; o último espasmo do parto. E logo tornou a caminhar, em marcha rápida, impaciente, afastando-se de sua terra, do lar paterno, de tudo quanto jazia atrás dele.

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