domingo, 14 de agosto de 2016

A relação entre a ciência e a filosofia (por Lawrence Sklar)

Lawrence Sklar
Tradução de Desidério Murcho, Pedro Galvão e Paula Mateus.
 
A demarcação das ciências naturais em relação à filosofia foi um processo longo e gradual no pensamento ocidental. Inicialmente, a investigação da natureza das coisas consistia numa mistura entre o que hoje seria visto como filosofia (considerações gerais das mais vastas sobre a natureza do ser e a natureza do nosso acesso cognitivo a ele) e o que hoje seria considerado como próprio das ciências particulares (a acumulação de factos da observação e a formulação de hipóteses teóricas gerais para os explicar). Se olharmos para os fragmentos que nos restam das obras dos filósofos pré-socráticos, encontraremos não só tentativas importantes e engenhosas para aplicar a razão a questões metafísicas e epistemológicas vastas, mas também as primeiras teorias físicas, simples mas extraordinariamente imaginativas, sobre a natureza da matéria e os seus aspectos mutáveis.
Na época da filosofia grega clássica já podemos encontrar uma certa separação entre as duas disciplinas. Nas suas obras metafísicas, Aristóteles faz claramente algo que hoje seria feito por filósofos; mas em muitas das suas obras de biologia, astronomia e física encontramos métodos de investigação que são hoje comuns na prática dos cientistas.
À medida que as ciências particulares, como a física, a química e a biologia, foram aumentando em número, canalizando cada vez mais recursos e desenvolvendo metodologias altamente individualizadas, conseguiram descrever e explicar os aspectos fundamentais do mundo em que vivemos. Dado o sucesso dos investigadores das ciências específicas particulares, há muito quem pergunte se ainda restará algo para os filósofos fazerem. Alguns filósofos pensam que existem áreas de investigação que são radicalmente diferentes das que pertencem às ciências particulares, como, por exemplo, a investigação sobre a natureza de Deus, sobre o “ser em si” ou sobre qualquer outra coisa do género. Outros filósofos tentaram de várias maneiras encontrar uma área remanescente de investigação em filosofia que estivesse mais próxima dos desenvolvimentos mais recentes e sofisticados das ciências naturais.
Segundo uma perspectiva mais antiga, que foi perdendo popularidade ao longo dos séculos sem nunca desaparecer inteiramente, existe uma maneira de conhecer o mundo que nos seus fundamentos não precisa de depender da investigação observacional ou experimental própria do método das ciências particulares. Esta perspectiva foi influenciada parcialmente pela existência da lógica e matemática puras, cujas verdades firmemente estabelecidas não parecem depender, para que estejam garantidas, de qualquer base observacional ou experimental. De Platão e Aristóteles a Leibniz e aos outros racionalistas, passando por Kant e pelos idealistas, e mesmo até ao presente, tem persistido a esperança de que, se fôssemos suficientemente inteligentes e perspicazes, poderíamos estabelecer um corpo de proposições que descreveriam o mundo e que, no entanto, seriam conhecidas com a mesma certeza com que dizemos conhecer as verdades da lógica e da matemática. Poderíamos acreditar nessas proposições independentemente de qualquer apoio indutivo obtido de factos específicos observados. Se dispuséssemos de um corpo de conhecimento como esse, não teríamos atingido o objectivo procurado durante séculos pela disciplina tradicionalmente conhecida por “filosofia”?
Segundo uma perspectiva mais recente, o papel da filosofia não é o de funcionar como fundamento ou extensão das ciências, mas como sua observadora crítica. A ideia é a de que as disciplinas científicas particulares usam conceitos e métodos. As relações entre os diversos conceitos, embora estejam implícitas no seu uso científico, podem não ser explicitamente claras para nós. O papel da filosofia da ciência seria assim o de clarificar essas relações conceptuais. Uma vez mais, as ciências particulares usam métodos específicos para fazer generalizações, a partir de dados da observação, em direcção a hipóteses e teorias. O papel da filosofia, segundo esta perspectiva, é o de descrever os métodos usados pelas ciências e explorar as bases de justificação desses métodos, isto é, compete à filosofia mostrar que os métodos são apropriados para encontrar a verdade na disciplina científica em questão.
Mas será que podemos diferenciar a filosofia e a ciência, a partir de qualquer uma destas perspectivas, de uma maneira simples e directa? Muitos especialistas sugeriram que não. Nas ciências específicas, as teorias por vezes não são adoptadas devido apenas à sua consistência com os dados da observação, mas também com base na sua simplicidade, força explicativa ou outras considerações que pareçam contribuir para a sua plausibilidade intrínseca. Quando constatamos isto, começamos a perder confiança na ideia de que existem dois domínios de proposições bastante diferentes: aquelas que são apoiadas apenas por dados empíricos, e aquelas que são apoiadas apenas pela razão. Muitos metodólogos contemporâneos, como Quine, estariam dispostos a defender que as ciências naturais, a matemática, e até a lógica pura, formam um contínuo unificado de crenças sobre o mundo. Todas elas, defendem estes metodólogos, são indirectamente apoiadas por dados da observação, mas todas contêm também elementos de apoio “racional”. Se isto for verdade, não será a própria filosofia, vista como o lugar das verdades da razão, uma parte do todo unificado? Isto é, não será também a filosofia apenas uma componente do corpo das ciências especializadas?
Quando procuramos a descrição e a justificação apropriada dos métodos da ciência, parece que estamos à espera que os resultados específicos das ciências particulares entrem de novo em cena. Como poderíamos compreender a capacidade dos métodos da ciência para nos conduzir à verdade se não estivéssemos em condições de mostrar que esses métodos têm realmente a fiabilidade que lhes é atribuída? E como poderíamos fazer isso sem usar o nosso conhecimento sobre o mundo, que nos foi revelado pela melhor ciência de que dispomos? Como poderíamos, por exemplo, justificar a confiança da ciência na observação sensorial se a nossa compreensão do processo perceptivo (uma compreensão baseada na física, na neurologia e na psicologia) não nos assegurasse que a percepção, tal como é usada quando se testam as teorias científicas, é realmente um bom guia da verdade sobre a natureza do mundo?
É ao discutir as teorias mais gerais e fundamentais da física que a imprecisão da fronteira entre as ciências naturais e a filosofia se torna mais manifesta. Dado que elas têm a ambição ousada de descrever o mundo natural nos seus aspectos mais gerais e fundamentais, não é surpreendente que os tipos de raciocínio usados ao desenvolver estas teorias altamente abstractas pareçam por vezes estar mais próximos dos raciocínios filosóficos que dos métodos usados quando se conduzem investigações científicas de âmbito mais limitado e particular. Mais adiante, à medida que explorarmos os conceitos e os métodos usados pela física quando esta lida com as suas questões fundamentais mais básicas, veremos repetidamente que pode estar longe de ser claro se estamos a explorar questões de ciência natural ou questões de filosofia. Na verdade, nesta área da investigação sobre a natureza do mundo, a distinção entre as duas disciplinas torna-se bastante obscura.

Retirado de Philosophy of Physics, de Lawrence Sklar (Oxford University Press, 1992).
Fonte: criticanarede.com

Mito e filosofia: Lições preliminares sobre as origens e as diferenças conceituais entre mito e pensamento filosófico




Antes de buscarmos os conceitos e a diferença conceitual entre o mito e o pensamento filosófico, devemos afirmar como ponto de partida que somos descendentes da cultura ocidental, e como tal devemos estabelecer que o mito e a filosofia em questão são frutos das origens gregas, nosso escopo voltar-se-á, portanto, para estes. Cabe o esclarecimento, visto que os povos mais antigos do mundo, oriundos da cultura oriental, já buscavam explicações para a origem de tudo, valendo-se, não somente, de suas crenças e fantasias, mas, também, de especulações racionais. Dito isso, o que nos interessa é, portanto, - como filhos do ocidente - situar a diferença conceitual entre mito e filosofia dentro do contexto da Grécia antiga.
O MITO
É inevitável ao falar da Grécia e não vir à lembrança o termo "Mito". Até hoje, as ruínas daquela civilização trazem à tona no consciente de cada homem informado, que ali, nos primórdios, aquele povo culto criou meios de se entenderem como seres humanos no mundo (kosmos).
A definição dada pelos dicionários, grosso modo, é a de que "mito quer dizer história ou conjunto de histórias que fazem parte da cultura de um povo e tentam explicar fenômenos incompreendidos ou sem resposta comprovada, como a criação do mundo, o sentido da vida humana e morte" (História ilustrada da Grécia antiga, p.58). Diante disso, cabe sanar o entendimento comum de que uma pessoa ilustre ou representativa para qualquer sociedade, por seus feitos e vultos, uma vez morta recebe status de figura mítica ou lendária. Daí ser comum ouvir-se falar do mito de Gandhi, o mito de Mandela, mito de Bruce Lee... O emprego do termo mito aí recebe uma conotação que não é a do mito grego.
O mito, isto é, o pensamento mítico busca por meio de uma crença alcançar uma verdade; procura encontrar o sentido da vida; tenta dar explicações que perpetuamente inquietam o ser humano. Os poetas gregos, entre os quais Homero se destaca, em seus escritos e narrativas dá sentido às crenças míticas. E, ainda, a Teogonia de Hesíodo traduzia a cosmovisão mitológica por meio de versos e da tradição oral, já que a família grega passava de pai para filho, de geração para geração o conhecimento legado por esses gênios que tentavam interpretar o mundo por meio da palavra e da engenhosidade imaginativa do espírito. Politeístas que eram, os gregos valeram-se de muitos deuses para interpretar o mundo. Estes faziam parte de um mundo sobrenatural construído para explicar a realidade do mundo, sua origem, meio e fim.
Assim, Zeus era o chefe supremo do Olimpo. Homero o chamou de "o pai dos deuses e dos homens". Possêidon, deus dos mares - sua mulher era Anfitrite, neta do titã Oceano. Hades, deus do subterrâneo, por isso o inferno bíblico é sinônimo de Hades. Háracles (o mesmo que Hércules), filho de Zeus e da mortal Alcmena, conhecido por suas façanhas incríveis. Ares, deus da guerra, filho de Zeus. Apolo, deus do sol. Hérmes, conhecido como o mensageiro, filho de Zeus. Hefesto, deus do fogo, artesão divino, produzia os raios de Zeus. Dionísio (Baco, para os romanos), filho de Zeus, sua mulher desejou ver este em toda sua majestade, mas os raios luminosos procedentes desta visão a carbonizaram. Afrodite, deusa da beleza. Atena, deusa da sabedoria. Estes são algumas personagens míticas criadas da verve poética grega. Percebam que o mito é toda história construída com esses seres, que protagonizam um cenário de magia e fantasia.
O mito expressa o mundo e a realidade humana, além de ser sempre uma representação coletiva, ou seja, ele se refere à história de um grupo, de um povo, nunca de um único indivíduo. E os mitos são transmitidos de geração em geração, como uma espécie de herança que deve ser levada e passada adiante.
Justamente por tentar explicar o mundo e a complexidade da realidade, o mito não tem como ser lógico ou racional. Aos olhos dos leigos - e também dos menos sensíveis - os mitos parecem algo sem sentido. De fato, sua narrativa é ilógica e irracional, mas assim deve ser, pois ele está aberto a todas as interpretações possíveis. O mito deve, antes de tudo, ser decifrado (Op. cit., p. 71).
O PENSAMENTO FILOSÓFICO
"Não se pode ensinar filosofia, o que se pode é ensinar a pensar filosoficamente". Estas palavras de Immanuel Kant, de certo modo, revelam-nos o que a filosofia é. Delas podemos extrair que a filosofia não é coisa que se aprende, embora fosse Kant professor de filosofia. Mas ela, a filosofia, não se aprende na práxis de que alguém pode ensinar a alguém uma filosofia, tal qual o professor ensina ao aluno em suas aulas a fazer cálculos ou uma fórmula qualquer. Ora isso pode ser um contrassenso, já que os grandes filósofos tiveram professores e alunos. Verdade. Mas estes não se propuseram a ensinar, mecanicamente, nenhuma filosofia a alguém. Os grandes filósofos debatiam, argumentavam, criticavam, questionavam, duvidavam, ou seja, exercitavam o ato de pensar, mas pensar radicalmente, até ao âmago das coisas. Enfim, nesse sentido, professor e aluno eram verdadeiros agentes do pensar filosófico, e com isso faziam filosofia, pensavam filosoficamente. Como se percebe, o pensar filosófico é crítico e radical, exige sistematicidade e compromisso com o todo, e neste está o homem inserido.
Fazer filosofia
Não obstante, temos que nos render ao dizer de Platão: "É impossível que a massa seja filósofa" (República, VI, 8, 494a).


A Filosofia (gr.: philosophia = amor à sabedoria) não foi uma criação ou uma descoberta de algum prodígio. Nem tampouco uma arte inventada da técnica apurada de um feiticeiro. Nem de um místico do deserto que recebeu uma revelação depois de uma peregrinação sem-fim. Não foi. A filosofia já nasce com o homem. Ela é a morada do ser, conforme Heidegger. É o ser humano que tem a dotação para fazer filosofia, pois ele tem o atributo próprio para isso. Só ele tem o que nenhum outro ser tem, aquilo que o faz diferente, e que o leva a indagar, perscrutar, duvidar, sobre si mesmo e sobre o mundo. Este atributo que é a razão é quem o qualifica para o pensar filosófico. O homem racional está apto para filosofar. Mas, não se contentando com isso, devemos dizer como Gianfranco Morra, que "todos são filósofos, à medida que querem ser humanos; ninguém é filósofo, à medida que é somente humano" (2001: p. 10).
Quando o mito não mais fornecia a necessária e suficiente confiança para explicar o mundo, Tales de Mileto ousou formular uma nova forma de compreensão cosmológica (período cosmológico ou pré-socrático), o sábio grego ao observar às margens do Nilo a fertilidade deste, deduziu que a origem do mundo, o princípio substancial (arché) de todas as coisas era a água, pois ela é quem dá vida a tudo. Realmente, as águas do Nilo faziam germinar todo o tipo de vida tanto vegetal como animal. Hoje, parece tudo muito simples. E muitos podem até ignorar a importância disso, por não saberem que quem ousasse a contrariar a crença (doxa) do grego antigo, se não fosse capaz de provar poderia ser punido com a morte. Tales de Mileto é considerado o primeiro filósofo, e todos os outros que o sucederam em seu tempo - isto é, os pré-socráticos - buscaram como ele, uma explicação não mais nos mitos, mas na própria physis (natureza).
Desse contexto histórico-filósofico, percebe- se que o pensamento filosófico vale-se da razão para formular hipóteses ou questões problematizadoras em busca, sempre, da verdade das coisas. Daí a definição de Aristóteles que filosofia é disciplina que estuda as causas primeiras e o os fins últimos das coisas. Por isso mesmo, a filosofia é um saber crítico, que põe em crise toda verdade preestabelecida, não aceita como evidente todo dado posto diante de si. A filosofia, portanto, não é ciência, não é um saber acabado e estanque.
Enfim, não é fácil definir a filosofia, mas deixo, nesse remate, a definição de Karl Jaspers: "A filosofia é o pensamento no qual torno-me íntimo do Ser mesmo por meio da ação interior, é o pensamento no qual torno-me eu mesmo. Ela é, em outras palavras, o pensamento que prepara o lançar- se na Transcendência, recorda-o, e até, num instante sublime, o produz, à medida que é atividade de todo homem no seu pensar". (A minha filosofia, 1941: 3 Apud Morra: 2001, p. 11).
Tales de Mileto
Os primeiros filósofos gregos costumavam ser chamados de présocráticos, porque eles antecederam Sócrates. Os textos dos iniciadores da filosofia se perderam praticamente todos, restando apenas trechos de alguns escritos e frases. Na qualidade de fundadores da filosofia, os pré-socráticos deram início ao discurso da razão, que viria a dominar o Ocidente desde então. (História ilustrada da Grécia antiga, p. 76).
Karl Jaspers
Filósofo e psiquiatra alemão, Karl Theodor Jaspers (1883-1969) trabalhou no hospital psiquiátrico na Universtität Heidelberg e, anos depois, lecionou filosofia na Universtität Basel. Seu pensamento está associado ao neokantismo e o existencialismo.

REFERÊNCIAS
A História ilustrada da Grécia antiga. São Paulo: Editora Escala, 2008
MORRA, Gianfranco. Filosofia para todos. Trad. Mauricio Pagotto Marsola. São Paulo: Paulus, 2001.
*José Fernandes Pires Júnior é professor de Filosofia na rede de ensino público do DF, advogado e pós-graduando em Filosofia e Direitos Humanos. Autor do livro O Sofrimento dos Filósofos (Ed. Biblioteca 24 horas) e de vários artigos nas áreas do Direito e da Filosofia.
FONTE: Revista Filosofia (Portal Conhecimento prático)

Hércules no Escritório: as Olimpíadas e o Trabalho

Subsiste por detrás das competições um conjunto de modelos de relacionamento com o mundo.



por Duanne Ribeiro/ introdução Eric Campi


No que concerne à ética — aos modos pelos quais decidimos viver — a que em nós apelam as Olimpíadas, quais símbolos contêm que ressoam aqueles que nos preenchem? Tanto na Grécia clássica quanto nos diferentes momentos da versão moderna dos jogos, modelos tais que funcionam como interfaces entre distintos âmbitos sociais. Se a guerra, a política e a religião, entre os gregos clássicos, se espelhavam e eram espelhadas nas atividades atléticas, o que espelham as Olimpíadas atuais e o que se espelha nelas? Percorrendo as variações do símbolo atleta ao longo da história, das maneiras como o atleta é reconhecido, podemos especular sobre o dado essencial que funda os esportes e o nosso cotidiano.
Em “The Heroic Athlete in Ancient Greece”, do professor de história da Universidade do Sul de Utah, David J. Lunt, lemos que, na Grécia dos cinco séculos antes da era comum, ao atleta se abria como potencial a divindade. Pela excelência no esporte (no que chamaríamos de esporte), podia o sujeito se aproximar dos deuses, fazer-se um semideus e um herói. Não se tratava dos únicos que alcançavam a “heroicização”, mas “a vitória atlética provia uma avenida para o status heroico”. Tendo esse objetivo em vista, não só, por óbvio, desenvolviam sua habilidade, como procuraram agregar à sua imagem referências míticas, inclusive reproduzindo, em pessoa, feitos lendários (de Polydamas de Skotoussa, diz-se que, para imitar Hércules, subiu ao Monte Olimpo e matou um leão com as mãos nuas). O culto aos atletas-heróis se equiparava ao dos deuses.
A vitória nas competições, nos conta Lunt, atribuía ao atleta kudos, termo que denotava um dom divino— “com frequência traduzida por ‘louvor’ ou ‘renome’”, para os antigos a palavra indicava “um poder especial outorgado por um deus que faz o herói invencível”. Ao caminho para chegar à imortalidade heroica, faltavam ainda dois componentes: kleos, “glória e fama”, e timé, “o culto em sua honra”. Talvez possamos pensar que esses momentos são os avançados investimentos e expansão do capital simbólico conquistado nos torneios — kleos se constitui do que se fala do atleta, do que cantam sobre ele os poetas, por exemplo; timé, nesse caso, quiçá se diga o ponto em que esse processo todo se institucionaliza. A eternidade ao alcance do esforço e do discurso.
Tal compreensão de que podemos, por atos e palavras, tornarmo-nos ou provarmo-nos dignos, companheiros dos deuses, nos remete à Friedrich Nietzsche. A Genealogia da Moral descreve os deuses gregos, a religião grega, como “reflexos de homens nobres e senhores de si, nos quais o animal no homem se sentia divinizado e não se dilacerava, não se enraivecia consigo mesmo!”. Nietzsche parece crer que essa civilização, em sua teodiceia, dispunha diante de si a potência de vida que havia neles próprios em confronto com o mundo. Tudo se passa como se nós fôssemos compostos de divino — e, avançando a partir da interpretação nietzschiana, como se o sucesso atlético fosse a demonstração dessa composição identitária, dessa filiação.
Esse contínuo homem-deus não estava em questão na refundação dos jogos em 1896 pelo barão Pierre de Coubertin, embora uma tendência aristocrática persistisse nela. Segundo o doutor em educação Alberto Reinaldo Reppold Filho, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o barão “combinou a sua visão da cultura helênica com o ethos do Cristianismo Muscular presente nas escolas públicas inglesas no auge do Liberalismo” (de “Desafios do olimpismo: contribuições da filosofia moral”) — esse “cristianismo muscular”, pelo que pudemos aferir, advogava um corpo perfeito e forte, em aliança com a fé. Coubertin cunhou o que seria o lema dos Jogos Olímpicos:
“O importante na vida não é o triunfo, mas a luta; o essencial não é ter ganho, mas ter lutado bem”, que possui outras formulações. Esse lema sobrepõe algumas camadas de ideias.
Professor de estudos clássicos da Universidade da Flórida, David C. Young discute a controvérsia sobre a autoria dessa frase, no artigo “On the Source of the Olympic Credo”. Coubertin a atribuía ao pastor Ethelbert Talbot, que por sua vez se referia ao apóstolo Paulo. Young aponta que o recriador dos jogos já havia dito algo idêntico em uma ocasião anterior à fala de Talbot que seria a sua influência; a origem real da frase, demonstra o professor, seria o poeta romano Ovídio. No livro As Metamorfoses há um “nec tam turpe fuit vinci quam contendisse decorum est”, que, em tradução livre, seria “não é tão vergonhoso ser derrotado como é honroso ter lutado”. Embora o verso de Ovídio se dê após uma partida de pancrácio (luta grega clássica) entre o deus Acheloo e o herói Hércules, ou seja, se situe em um contexto próximo ao olímpico, já aqui podemos ver um deslocamento em relação aos ideais que expomos anteriormente: onde a invencibilidade do kudos? Mas para avaliar esse ponto seria preciso um estudo mais aprofundado.
Levando em consideração que Coubertin prestava tributo à Talbot, analisemos também o que disse o pastor e que teria inspirado o barão: “(…) a lição da real Olímpia: que os Jogos em si são um prêmio maior que a corrida e o prêmio. São Paulo nos conta como é insignificante o prêmio. O nosso prêmio não é corruptível, mas incorruptível, e, não obstante só um homem possa vestir os louros, todos podem compartilhar igual alegria na disputa. Todo encorajamento, assim, seja dado aos estimulantes — e, posso também dizer, salvadores de almas — que se interessam pelo ativo e justo e limpo esporte atlético” (a fala completa está no texto biográfico “Ethelbert Talbot: His Life and Place in Olympic History”, do historiador Ture Widlund). Young afirma que Talbot distorce São Paulo nesse ponto; de toda maneira, notemos a distinção de valores: em lugar da divinização, a salvação de almas; imortalidade, ainda, mas, como veremos, não por identidade com o transcendente, mas pela demonstração de virtude.
Nesse contexto de pensamento, qual é então o atleta esperado? Uma perspectiva disso é dada por um artigo publicado ao fim deste julho pela revista New Yorker. “Doping and Olympic Crisis of Idealism”, da jornalista Louisa Thomas,cita um juramento escrito pelo fundador, para ser lido pelos esportistas, em 1920, na Antuérpia, Bélgica: “Nós juramos que tomamos parte dos Jogos Olímpicos como competidores leais, observando as regras que governam os Jogos e ansiosos para exibir um espírito de cavalaria, pela honra dos nossos países e pela glória do esporte”. Ela comenta que o seu objetivo “era reviver um mundo melhor, mais nobre, onde se perseguia a excelência por si própria”.A referência à cavalaria acena à autoimagem da nobreza europeia; o teor aristocrático se efetivava na exigência de uma prática desinteressada; o atleta devia ser um amador, não um profissional. Sua atuação devida a um princípio (“uma questão da alma”, como disse, ecoando Talbot, um membro do Comitê Olímpico Internacional), não ao ganho material.
Novamente podemos retornar à Nietzsche, menos para defender seu ponto de vista na questão do que para sublinhar a ruptura entre as visões de mundo de um momento a outro. O ter a alma salva em vez do fazer-se deus pode ser entendido como a ascensão da negação da vida presente sobre a sua afirmação. Na Genealogia da Moral, ele escreve: “Hibris é a nossa atitude para com nós mesmos, pois fazemos conosco experimentos que não nos permitiríamos fazer com nenhum animal, e alegres e curiosos viviseccionamos nossa alma: que nos importa ainda a ‘salvação’ da alma!”. Sobre a isenção do esforço, o que lá seria aristocrático soa a Nietzsche o seu oposto: “É somente com um declínio dos juízos de valor aristocráticos que essa oposição ‘egoísta’ e ‘não-egoísta’ se impõe mais e mais à consciência humana (…) na Europa de hoje, o preconceito que vê equivalência entre ‘moral’, ‘não-egoísta’ e ‘désinteréssé’ já predomina com a violência de uma ideia fixa ou doença do cérebro”. Algo fundamental, parece, foi transformado.
E o que se estabeleceu então, conforme se aproximavam os nossos dias, foi transformado a seu turno. Louisa Thomas descreve como o ideal de amadorismo foi perdendo espaço, processo que se evidencia pela construção de um dogma: a inaceitabilidade das drogas de aperfeiçoamento de performance. O doping, antes, era menos ainda que um problema menor, sendo inclusive o objeto de políticas públicas. Em 1962, o Comitê Olímpico Internacional começou a desenvolver recursos para coibir essa prática (inclusive uma lista de substâncias banidas) e se deu em 1988 o primeiro grande escândalo nesse sentido, resultando na punição do velocista Ben Johnson. Ali, o que emergiu foi a figura com que nos defrontamos atualmente: o atleta como profissional.
Com efeito, foi em 1988, na cidade de Seoul, na Coréia do Sul, que as Olimpíadas (de verão) pela primeira vez aceitaram a participação de profissionais. O dado é de Thomas; ela também afirma que “o que realmente mudou as coisas, é claro, foi a introdução da televisão, e as fantásticas quantias de dinheiro que inundaram os Jogos, fluindo ao redor dos atletas, mas não para eles — e o desejo do público de ver os melhores atletas, os dream teams, competir”. O sociólogo Pierre Bourdieu, em “Os Jogos Olímpicos”, publicado no livro Sobre a Televisão, ressalta precisamente esse aspecto: “O que entendemos quando falamos dos Jogos Olímpicos? O referencial aparente é a manifestação ‘real’, isto é, um espetáculo propriamente esportivo, confronto de atletas vindos de todo o universo que se realiza sob o signo de ideais universalistas, e um ritual, com forte coloração nacional, senão nacionalista (…). O referencial oculto é o conjunto das representações desse espetáculo filmado e divulgado pelas televisões (…)”.
“Os Jogos Olímpicos” é um plano de pesquisa que evidencia as estruturas comerciais e midiáticas por trás das Olimpíadas tendo em vista “um domínio coletivo desses mecanismos”, de maneira a “favorecer assim a expansão das potencialidades do universalismo, hoje ameaçadas”. O atleta, nessas estruturas, é uma peça: “(…) no jogo esportivo, o campeão, corredor de cem metros ou atleta do declato, é apenas o sujeito aparente de um espetáculo que é produzido de certa maneira duas vezes: uma primeira vez por todo um conjunto de agentes, atletas, treinadores, médicos, organizadores, juízes, cronometristas, encenadores de todo o cerimonial, que concorrem para o bom transcurso da competição esportiva no estádio; uma segunda vez por todos aqueles que produzem a reprodução em imagens e em discursos desse espetáculo, no mais das vezes sob a pressão da concorrência e de todo o sistema das pressões exercidas sobre eles pela rede de relações objetivas na qual estão inseridos”.
Seria interessante estudar o quanto os períodos anteriores, nessa nossa construção retórica, se moldam na mesma fôrma exibida por Bourdieu. Por exemplo, o quanto kleos e timé são versões anteriores dessa produção de imagens e discursos. Mas isso seria tema para outro artigo. Vamos destacar somente que a visão da agência do atleta chega nesse ponto a um grau mínimo: não é mais um aspirante à deidade nem tem os pés na antessala do paraíso que a virtude garante; é o mecanismo central e substituível no interior de uma máquina. Em tal contexto, uma das tarefas propostas por Bourdieu é “analisar os diferentes efeitos da intensificação da competição entre as nações que a televisão produziu através da planetarização do espetáculo olímpico, como o aparecimento de uma política esportiva dos Estados orientada para os sucessos internacionais, a exploração simbólica e econômica das vitórias e a industrialização da produção esportiva que implica o recurso ao doping e a formas autoritárias de treinamento”.
Há um elemento provocativo nesse último trecho: ao mesmo tempo que o profissionalismo, ao ascender, estabeleceu o doping como seu crime principal, esse mesmo profissionalismo, dados os seus efeitos internacionais, econômicos, politiqueiros, implica o doping. O caso, referido pela jornalista da New Yorker, da ameaça de banimento de todos os atletas russos neste 2016, pelo uso sistemático, encoberto pelo governo, de drogas que permitem melhores atuações, aparece então, para além dos ideais existentes só em discursos, como o produto de um estado de coisas. É com esse estado de coisas, penso, que nos identificamos; não com o que ele diz de si, não com a sua superfície, mas com o que profundamente diz a respeito do corpo e do trabalho.
O Atleta-Corporativo, o Sujeito Administrável
O conceito de trabalho parece estar presente, desde a origem, na palavra atleta. Segundo David J. Lunt, athla significava aos gregos antigos tanto o esforço competitivo quanto os prêmios das competições. Diz o pesquisador: “Os athla ou ‘trabalhos’ de Hércules o caracterizavam como um ‘atleta’ que se esforçou por seu ‘prêmio’ — neste caso, o ‘prêmio’ da imortalidade. Dessa forma, Hércules o atleta se esforçou para completar seus trabalhos, como eliminar o leão de Nemeia, limpar os estábulos de Áugias e colher as maçãs do Jardim das Hespérides”. Nossos doze ou bem mais trabalhos cotidianos são muito divergentes dos de Hércules. Na mesma medida em que se transformou a concepção de trabalho, mudou a concepção de atleta. Proponho, como é visível, que isso se dá por uma ligação subterrânea entre as duas noções. O atleta e o trabalhador, na forma como os vemos e nos vemos, são objetos de gestão. Somos coisas a administrar.
Um exemplo. A revista piauí publicou em julho a reportagem “A Pit Bull”, sobre as nadadoras de maratona Ana Marcela Cunha e Poliana Okimoto, escrita pela jornalista Luiza Miguel.A imagem de atleta que transparece é a do eixo a que convergem especialidades. O resultado esportivo é o efeito de saberes técnicos não-esportivos. Medicina, comunicação, tecnologia, cujos poderes sobre a sociedade atual são tremendos, são alguns desses saberes. Os metabolismos de Cunha e Okimoto são definidos pelos profissionais que lhes prescrevem a absorção nutricional devida; os movimentos de Cunha na água são filmados, analisados e corrigidos ponto a ponto. O corpo administrável é algo que vem sendo construído há longo tempo. O professor de história da arte Jonathan Crary, em Técnicas do Observador, expõe isso: “O grande logro da fisiologia europeia na primeira metade do século XIX foi uma investigação abrangente de um território até então semidesconhecido, um inventário do corpo. Tratava-se de um conhecimento que seria a base para formar um indivíduo adequado às exigências produtivas da modernidade econômica e às tecnologias emergentes de controle e sujeição”.
A disciplina relacionada ao esporte e ao trabalho é um local onde é flagrante a identidade entre o que se fala sobre ambos. No perfil da piauí, lemos, sobre Cunha: “’Depois do almoço, retornava à piscina e treinava mais algumas horas.’ Só folgava aos domingos. Não lhe sobrava tempo para ser adolescente”. Comparem com este trecho de outra fonte: “Steven Wanner é um altamente respeitável sócio de 37 anos da Ernst & Young, casado e com quatro filhos. Há um ano, quando o conhecemos, ele trabalhava de 12 a 14 horas por dia, se sentia perpetuamente exausto e lhe era difícil se engajar na família, o que o deixava culpado e insatisfeito. Ele dormia mal, não tinha tempo para exercício, raramente comia refeições saudáveis, em vez disso petiscava na correria ou trabalhando em sua mesa”. A diferença de “cuidados com a saúde” me parece superficial: a identidade entre essas duas posturas está na sua dedicação estrita, full time, ao serviço.
Este trecho é extraído de “Manage Your Energy, not Your Time”, dos empresários Tony Schwartz e Catherine McCarthy; em “The Making of a Corporate Athlete”, de Schwartz e Jim Loehr, ideias semelhantes são apresentadas. O que os autores defendem é que Steven Wanner sofre não por algum problema nas condições do seu emprego, porém por uma deficiência de gestão. É por ele não se administrar com eficácia, que entra em dificuldades. “O problema central em trabalhar por longas horas é que o tempo é um recurso finito. A energia é outra história. Definida na física como a capacidade de trabalho, a energia vem de quatro fontes principais: o corpo, as emoções, a mente e o espírito. Em cada, a energia pode ser sistematicamente expandida e regularmente renovada pelo estabelecimento de rituais específicos — comportamentos intencionalmente praticados e precisamente agendados, com a meta de fazê-los inconscientes e automáticos o mais rápido possível”. Todos os núcleos da experiência humana são assets do indivíduo.
Sintomático para nós, os autores chegaram à sua teoria por meio do esporte: “Nossa abordagem tem suas raízes nas duas décadas em que Jim Loehr e seus colegas trabalharam com atletas de nível mundial. Há muitos anos atrás, nós dois [Schwartz e Loehr] começamos a desenvolver uma versão mais abrangente dessas técnicas, para executivos que confrontavam demandas nos seus campos de trabalho que não tinham precedentes. Com efeito, nós chegamos à conclusão que esses executivos eram ‘atletas corporativos’. Se devem performar em alto nível no longo prazo, defendemos que devem treinar no mesmo modo sistemático e multicamada que os atletas de nível mundial fazem”. O que se diz aos altos executivos, é claro, também acaba se aplicando aos das divisões hierárquicas inferiores (ou das divisões “horizontais”, como se dissimula hoje).
É inegável, portanto, que entre esses ambientes simbólicos existe um intercâmbio de valores e um reforço mútuo. No limite, é possível dizer que o vórtice onde se tocam esporte, trabalho, e, subjacente a ambos, ética, é na ideia de uma sociedade de manutenção da exaustão. Em que o que não se põe em questão é somente a própria exaustão e seus motores primeiros. Muitos são os diagnósticos nesse sentido. “Exaustos-e-correndo-e-dopados”, da jornalista Eliane Brum, um ensaio que usa o conceito de sociedade do cansaço, do filósofo Byung-Chul Han, é um deles. Um outro é “How Exhaustion Became a Status Symbol”, resenha do livro Exhaustion: A History, feita pela escritora Hannah Rosefield à New Republic. Ela diz que, em nossa época, “afirmar que você está exausto é comunicar que você é importante, requisitado e bem-sucedido”. Nós assistimos às Olimpíadas para ver o jogo dessa teoria de vida? Espetacularizado, o jogo de um corpo de um sujeito submetido aos ritmos corporativos e científico-aplicados. Espetacularizado, o jogo de um indivíduo que se leva à exaustão — não por si, não por sua alma — porém pelo trabalho.

Duanne Ribeiro é jornalista, mestrando em ciência da informação e graduado em 
filosofia, com especialização em gestão cultural.
Fonte: Revista Cult online